Comentário a Jó 1.13-22 - Parte 1


joparte1Após satanás sair, não sabemos precisamente quanto tempo decorreu até os acontecimentos que se seguem. O início do verso 13, “E sucedeu um dia...”, não traz nenhum indicativo de quando o diabo começou a agir. A idéia que temos é de que não foi algo imediato, logo após Deus autorizá-lo a tocar em Jó. Talvez algumas semanas ou meses depois. O certo é que os filhos de Jó estavam novamente se regalando na comida e no vinho. Parece-me que eles não faziam outra coisa a não ser festejar a riqueza que o pai lhes proporcionava, a opulência em que viviam, sem sequer agradecer a Deus pelas dádivas de que dispunham. Isso é um fato, visto que a única referência do texto a eles é quanto à freqüência com que se esbaldavam, e mais nada.

Àquela época, como hoje, os homens priorizavam os prazeres e desejos da carne, o deleite individual mesmo numa aparente confraternização, o que poderia nos remeter a uma espécie de comunhão, mas que normalmente não passava de exibição, ainda que dissimulada pelo compartilhar algo com elas... A vida atual é a repetição da vida antiga... Há uma busca desenfreada pela diversão, como se fosse possível alegrar-se apenas na volúpia. A distração leva o homem ao esquecimento de si mesmo, do que é, e de Deus. Por isso as pessoas sofrem no cotidiano, sentem-se massacradas pela máquina, oprimidas, mas a verdade é outra: o desejo de viver uma constante brincadeira irresponsável e alienada faz com que a realidade seja dolorosa e somente suportada, porque é algo indesejado que não se consegue evitar.

Isso nos remete ao Éden, quando Adão, insatisfeito com tudo o que Deus lhe dera (não necessariamente insatisfeito, mas não satisfeito completamente), desejou em seu coração ser como Deus (Gn 3.5). Então o descontentamento é o resultado da rebeldia do homem contra o Criador e Seus desígnios, os quais o mortal rejeita; e vê como única forma de aplacar a insatisfação o regalar-se no pecado. É como se dissesse: “Deus, você me quer infeliz, porque não consigo ser feliz do Seu jeito, mas eu provo que posso ser feliz à minha maneira”.

E a convivência com o próximo é, na maioria das vezes, o prazer de afrontá-lo com o nosso prazer, jogar na sua cara que somos felizes ao ponto em que ele jamais o será (uma competição inútil, frívola). Então o prazer não está mais no íntimo, é externo, e se acomoda na antessala do individualismo, quando os olhares do mundo estão postos em nós. Por isso, desde Adão, o mundo decresce aos níveis mais baixos de imoralidade, onde o amor não tem lugar na sociedade e, mesmo na igreja, parece esquecido ou pelo menos adormecido.

Quantos deuses cultuam-se no mundo atual? O consumismo, adrenalina, sexismo, drogas, narcisismo, mentiras, e os vários níveis de compulsão relacionados a eles, e suas variantes, os quais dão uma momentânea felicidade enquanto exercitados; e a expectação de repeti-los uma próxima vez é a tábua de salvação do dia a dia. O que nos faz escravos da esperança fugidia e irrealizável...

Não há como duvidar da influência de satanás no mundo. Quando falamos do mal, ele é a sua forma e essência, a face oculta do pecado (mas ao mesmo tempo visível pela revelação bíblica). Portanto, não é de se admirar que não ouvimos os filhos de Jó a orar, sacrificar, ou buscar a Deus, mas a banquetearem-se uns com os outros, numa festança sem fim, onde a premissa era ser feliz enquanto fosse possível, enquanto durasse.

O fato de Jó oferecer holocaustos aos filhos (v.5) revela não somente o amor que tem por eles, mas o amor e obediência que tem a Deus; o temor e a reverência que os seus filhos desconheciam, e que nele eram manifestas.

Logo, a obra de satanás tem início na vida de Jó; e numa sequência aterradora, ele é informado quase simultaneamente de que uma tragédia caíra sobre si. Primeiro, são-lhe roubados os bois e jumentas, e os servos mortos pelos sabeus [mercadores africanos, homens de alta estatura (Is 45.14), descendentes de Sebá, neto de Cão (Gm 10.7)]. Apenas um dos servos foi deixado vivo, "para trazer-te a nova" (v. 15).

Jó não teve tempo sequer de absorver o impacto da notícia, pois, "estando este ainda falando, veio outro" servo (v. 16), e trouxe-lhe a novidade de que o "Fogo de Deus caiu do céu, e queimou as ovelhas e os servos, e os consumiu", restando apenas o informante. Não há dúvida quanto a origem do fogo de Deus, pelo menos, assim creio. Se as outras investidas aos bens de Jó são efetivamente originarias do diabo, neste caso o texto bíblico não é presumível, mas evidente: o fogo que consumiu as ovelhas e os servos proviera do próprio Deus. O mesmo aconteceu no tempo de Elias quando o rei Acazias mandou que três tropas sucessivamente levassem o profeta até ele, que se achava enfermo. As duas primeiras tropas, com o capitão mais cinqüenta homens cada, foram consumidas pelo fogo do céu. "Então o fogo de Deus desceu do céu, e o consumiu a ele e aos seus cinqüenta" (2Rs 1.12). Também, quando Elias se viu confrontado pelos profetas de Baal, Deus fez descer fogo para consumir o holocausto que o profeta apresentara como prova de que apenas o Senhor era Deus, e de que Baal era uma farsa (1Rs 18.22-40). Portanto, não há como duvidar da assertiva de que foi o Senhor quem mandou o fogo que devorou as ovelhas e os servos de Jó.

Não houve tempo para se recuperar. Enquanto era-lhe concluído o relato, outro servo veio, e disse que três tropas dos caldeus* tomaram os seus camelos, e "aos servos feriram ao fio da espada", exceto o que escapou,"para trazer-te a nova" (v.17).

Jó não esperava que mais nenhum desastre fosse acontecer; subitamente ele estava arruinado financeiramente, não lhe restara nada, nenhum bem com o que se sustentar. Talvez tenha pensado nos banquetes dos filhos e se entristecido, porque não teria mais como patrociná-los, afinal era um homem pobre agora... Talvez a sua preocupação fosse de que, mesmo sem bens, seus filhos continuariam pecando, e ele não teria nenhum sacrifício a oferecer a Deus, a fim de santificá-los... Talvez se questionasse: "Por que eu?". Não era ele um homem justo, temente a Deus?... Talvez, enquanto eram-lhe relatados os infortúnios, elevou a Deus uma rápida oração... Talvez não houve tempo para pensar em nada, apenas derramar-se interiormente abatido...

Mas eis que ainda quando o último falava, chegou novo servo, dizendo-lhe: "Estando teus filhos e tuas filhas comendo e bebendo vinho, em casa de seu irmão primogênito, eis que um grande vento sobreveio dalém do deserto, e deu nos quatro cantos da casa, que caiu sobre os jovens, e morreram; e só eu escapei para trazer-te a nova". Em questão de minutos, Jó havia perdido tudo o que tinha na vida; não possuía bens, nem servos, nem filhos (não seria a morte dos filhos o julgamento de Deus sobre eles?). Era um homem arruinado e afligido. É difícil imaginar o que se passava em sua mente, ainda que façamos uma idéia. Cabe uma pergunta: Em lugar de Jó, como nos portaríamos?

É interessante como um simples escorregão, o esbarrão de um transeunte, o atraso do ônibus, o pneu vazio, ou qualquer outra coisa insignificante, pode nos trazer tanto desgosto e frustração. Diariamente somos submetidos a pequenas adversidades e, normalmente, as tratamos com impaciência, raiva, sem fé. Imagine que Jó tinha uma vida abastada, era um homem próspero e instantaneamente se tornou num miserável. Seríamos capazes de suportar um baque tão grande? Será que temos buscado e conhecido a Deus o suficiente para não odiá-lO, caso estivéssemos no lugar de Jó? Ou blasfemar e murmurar?

Em minutos, ele teve de aprender o que o apóstolo Paulo também aprendeu, nos ensinou, e teimamos em não entender: "... também nos gloriamos nas tribulações; sabendo que a tribulação produz a paciência, e a paciência a experiência, e a experiência a esperança. E a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios" (Rm 5.3-6).

Como é grandiosa a certeza de que Cristo morreu por nós quando éramos completa e absolutamente rebeldes, iníquos e opositores a Ele. Ainda assim, não fez causa da nossa perversão, e nos perdoou, ao morrer na cruz e derramar o Seu sangue "para remissão dos pecados" (Mt 26.28). Pelo Seu muito amor com que nos amou, Deus, que é riquíssimo em misericórdia nos vivificou em Cristo (Ef 2.4-5), e temos a esperança de que, naquele dia estaremos diante do nosso Senhor por toda a eternidade, e Ele limpará de nossos olhos "toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas" (Ap 21.4).

Certamente, Jó não teve esse entendimento, não dessa forma, com a completude da revelação que somente foi possível após a vinda do Messias. Mas, de um modo maravilhoso, Deus o amparou em fé, mantendo viva a confiança que ele tinha no seu Senhor, e mais, aumentando-a o equivalente à dor, o que lhe permitiu, diante do sofrimento, suportar todas as perdas, ser confortado em uma viva esperança, porque ela não estava despositada em si mesmo, mas nAquele em que cria, sabendo que era poderoso para guardar o seu depósito até o dia do Senhor (2Tm 1.12).

Assim como Davi, ele provou da misericórdia de Deus, porque "O Senhor sustenta a todos os que caem, e levanta a todos os abatidos" (Sl 145.14).

*Os caldeus (hebr. kasdim) foram um grupo de tribos que viviam ao sul da Babilônia. No AT há várias citações sobre eles que, sob o camando de Nabucodonosor destruiu Jerusalém, e levou o povo judeu para o cativeiro babilônico por 70 anos. Os caldeus foram derrotados pelos persas, e a Babilônia dominada por Ciro, que ordenou a reconstrução de Jerusalém, por Neemias.

Para ler o comentário de Jó 1.1-12, clique aqui.

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